segunda-feira, 1 de julho de 2013

6º " O Coração das Sombras

A madame soltou um grito de aflição e angústia. Também eu estava aflito a tremer de medo, enquanto cobria com a mão a parte direita superior da minha face. Tinha-me esquecido, por momentos, da razão da minha ausência. Num gesto de desespero e numa tentativa de escapar ao olhar perturbado da madame, que agora estava estendida para trás com as mãos a apoiarem o corpo e a soltar gemidos de medo, levantei-me apressado e comecei a correr tão desajeitadamente que por pouco não tropecei. Ela ficou ali, quieta ainda a pensar no que acontecera. Por um momento, olhou para a tesoura caída no chão e lembrou-se, absorta, no que a tinha feito gritar. E então com uma expressão de horror que mesmo assim não se comparava em nada à aflição que sentia levantou-se apressada e sem parar para sacudir a saia, foi a sua vez de desatar numa correria desenfreada. Chegou à porta da mansão e começou a chamar na voz de uma súplica:
- João! João! Depressa! O... O menino!             
- Que aconteceu mulher?!
Luísa chegou-se ao pé do mordomo que se encontrava no final das escadas mantendo uma expressão confusa e atrapalhada quando se viu agarrado pela madame.
- O menino... O Lu... O Lucas... Acho que... Um-uma ferida...
- Acalme-se mulher!... Vamos tentar de novo. O Lucas não se pode já ter metido em sarilhos. Acalme-se!... Vá, conte-me o que aconteceu.
A madame Luísa contou-lhe a saída até ao jardim para uma rápida cortadela ao cabelo. Mas à medida que lhe esclarecia o que havia visto e todas as suas suposições bem como medos o sorriso no rosto de João foi desaparecendo tal como o sol apagado pelas nuvens da tempestade daquele dia.

Estava encostado a uma árvore muito grande e que sempre ouvira dizer ser mais velha do que a própria vila. Era uma amendoeira que se encontrava nas traseiras da casa. Era uma árvore forte mas mais do que isso bela. Extraordinariamente bela. Desde pequeno que gostava de dormir as minhas sestas encostado àquela árvore debaixo das flores brancas a cair muito devagarinho com o brilho do sol... Mas agora estava a chover e eu estava atormentado por dúvidas e medos. E tremia. Tremia ao relembrar-me da cara que a madame fizera ao olhar-me. Os seus olhos que sempre me viam com ternura e amor estavam agora possuidores de um horror indescritível... Abraçava as pernas e pendia a cabeça entre os joelhos. Não chorava. Tinha os olhos meio abertos e a única água que me caía pela cara era a da chuva. Sentia-me partido ao meio, vazio... Para chegar à amendoeira era preciso percorrer um labirinto de arbustos. Durante todo o percurso eu não pensara,... apesar de ter passado tanto tempo os meus pés caminhavam habituados a todos os recantos que me eram familiares. Já devia lá estar há uma hora. Tudo o que eu podia fazer era contar os segundos que passavam para não me perder da minha mente. Ouvi passos apressados, poderia jurar que havia pessoas a correr no labirinto. Tinha o olhar fixado no chão, sempre na mesma posição de culpa. Mas não conseguia chorar. O mordomo apareceu na saída do labirinto a ofegar. Devia ter procurado por muitos sítios antes de se lembrar que eu devia estar ali. Ao ver-me começou um passo apressado na minha direção. Agarrou-me a cabeça com as duas mãos de cada lado e levantou-a. Pôs-me direito contra a casca da árvore e agarrou-me o ombro, depois com a mão livre afastou-me a franja do lado direito da cara... Também ele ficou assombrado mas era espanto que eu via na sua cara. Talvez ele conseguisse esconder melhor as emoções do que a Madame… Mas com ele a fixar o olhar em mim eu não tremia. Agora estávamos a olhar cara a cara, homem a homem. Dentro de mim lancei-lhe um olhar desafiante, mas a minha cara continuava inexpressiva como a de um fantasma. O mordomo caiu de joelhos à minha frente e libertou-me a face, ficando a fixar-me. Seguiu-o com o olhar, com os lábios a desenhar uma linha fina e inexpressiva. Quando a incredulidade desapareceu ficou a olhar-me com uma expressão de quem ouve tentando dar um conselho que pudesse acabar com os problemas das pessoas. Demorou-se. O problema era fácil de resolver. Bastava seguir com a vida, ouvir a minha explicação... Mas ele entrelaçara comigo uma espécie de amizade das quais as pessoas tomam consciência sem dizer uma palavra. Isso fazia com que ele já não conseguisse raciocinar, pois este ato tende a desaparecer quando nos aproximamos de uma pessoa e ainda para mais quando temos o desejo de a proteger. A nossa boca abre-se e quando o que precisamos é de algum sábio, damos connosco a ser simplesmente mais uma alma humana. Era agora nessa situação que se encontrava o mordomo: com um sentimento de perda que o deixava confuso e talvez até triste e assustado. Demorou-se mas acabou por conseguir.
                - Bem, por esta não esperava menino. Já estranhava a sua ausência prolongada e o seu ar mortiço, mas nunca pensei. Parecia óbvio mas nunca pensei...
   Levantou-se. Apenas reparei com um sentimento de choque que me tratara por você.
                - Isto sou eu a supor menino Lucas, terá que me contar por palavras suas e como deve de ser o que foi que na verdade aconteceu. Mas por agora... – parou. Parecia-me que lhe custava pensar no que fazer e ainda mais articular as frases que me dirigia - ...a Madame está preocupada… Além disso está ensopado da cabeça aos pés...

Eu tinha a cara virada para o céu. Nunca me preocupara muito com aspetos e mesmo com algo daquele tamanho, eu achava que poderia viver normalmente, pelo menos no que me tocava a mim. Mas todas as perguntas por detrás daquilo... Não me imaginava a respondê-las com um sorriso sarado. Estava assustado por tudo o que vira. Levei a mão até à face. Continuava absorto no que fazia. O sangue seco à volta dela deu-me vontade de a escarafunchar e acho que o acabei por fazer mesmo pois o João voltou a correr para ao pé de mim e agarrou-me o braço afastando a mão da minha cara. Virei-me para ele lentamente. Acho que desde a chegada do mordomo que eu não demonstrara sentimentos nenhuns. Ele estava assustado. Olhava para mim e eu podia vislumbrar nos seus olhos um pequeno fio de sangue a escorrer-me da cara. Parecia uma lágrima impossível na ausência de uma alma e de um olho para a chorar.  

5º " O coração das sombras

Quem poderia imaginar,… quem poderia sequer supor que seriam eles quem mais magoados ficariam por me verem esconder o meu sofrimento. Se o tempo voltasse atrás, eu teria agido como um miúdo egoísta e teria pedido que não me deixassem durante a noite onde as sombras revelam o que há nos olhos dos homens. Mas eu apenas sei contar o tempo e ele apenas me sabe ajudar a contar. Os meus afazeres higiénicos ficaram pois então para o dia seguinte. A noite foi antes utilizada para que eu pudesse descansar (embora numa cama antiga de outro empregado, pois fora-me negado o meu quarto devido ao meu estado referido pela Madame como: “Pior que um mendigo”). Mas penso que também a madame e o mordomo tiveram que fazer um esforço para dormir bem, culpando o sono de alguma visão estranha por debaixo da minha franja encaracolada e comprida, preferindo pensar e crer na minha sujidade.

 A Madame Luísa atendeu as minhas necessidades com aquele ar sempre meigo dela e, depois de ter decidido que seria mais fácil eu tomar banho com maior parte do cabelo e nós já cortados,  levou-me até ao pátio onde por entre carreiros de rosas e arbustos, com um lençol numa mão e a tesoura noutra chegou a um descampado de erva ainda dentro do grande jardim. Apenas vendo a cadeira de jardim branca ali isolada ao pé de uma árvore pequenina que ainda me dava pelos joelhos eu podia dizer que estávamos no nosso sítio secreto (escondido do senhor e do João) onde ambos passávamos tardes a ler ou a jogar cartas. Tive pena daquela senhora meiga a quem eu por vezes, por engano ou meiguice, chamava mãe. Ela ainda me vislumbrava, me queria, como o menino que andava à sua volta a pedir brincadeiras e jogos tal qual um pirralho mimado. Eu já não era assim... Há já muito tempo que fora obrigado a crescer para enfrentar o mundo e todos os seus defeitos cruéis. Para lutar por ele... A madame sentou-me na cadeira e pousou o alguidar de água juntamente com a tesoura na relva. Depois estendeu um grande lençol que prendeu às costas da cadeira. Começou-me a cortar lentamente o cabelo enquanto conversava para o ar acerca dos seus afazeres pondo aqui e ali uma queixa da qual o destinatário eu já não sabia se era o meu cabelo emaranhado ou a senhora Rosa da mercearia. Existiam cabeleireiros na vila mas a madame insistia sempre em ser ela a cortar-mo. Acho, e agora talvez tentando presentear-me com este pequeno prazer, que gostava de passar os dedos pelos meus cabelos, afagando-me várias vezes a cabeça. Quando acabou de mo cortar a parte de trás, sacudiu-me as costas e dirigiu-se para a parte da frente da cadeira. A minha franja cobria grande parte da minha testa bem como os olhos. Eu e a madame esboçávamos um pequeno sorriso partilhado. Não sei como é que ela não tinha reparado quando me abraçou. Talvez fosse da emoção... Mas a verdade é que quando me lembrei de que já não era assim, era tarde demais... 

4º " O Coração das Sombras

Estava escuro. Que dia é hoje? Ah pois… Levanto-me da cama. O meu quarto parece uma aglomeração de sombras, mas não tenho medo. Só um bocadinho não vai fazer mal não é? Rapidamente visto uns calções e uma camisa. Abro a janela e olho para as luzes da estação. Vamos lá! Uma espécie de orgulho preenche-me ao saltar da janela para o toldo do telhado. Mais um grande salto! Agarro-me à coluna e começo a escorregar em caracol até ao chão. Liberdade!! Vou a correr até à estação sem parar. Penso nas aulas de Geografia com a vara do professor de casaco preto. Corro mais depressa. Penso nas aulas de etiqueta com os gritos do educador de casaco de preto. Corro mais depressa e tropeço na minha velocidade impulsionada pela descida. Penso nas aulas de piano com os ouvidos rígidos do maestro de casaco preto. Mais depressa não é possível. Volto a pensar nas aulas de Geografia e no casaco preto. Tropeço mais uma vez e dou uma cambalhota da qual escapo com dificuldade. Continuo a correr até à estação.
Já está na hora de ir para casa e satisfeito com o meu passeio noturno clandestino começo a subida até a mansão, mas algo desperta a minha curiosidade e aproximo-me para ver melhor. É um miúdo. Dois adolescentes tapam o caminho de um rapazito. De repente um deles dá-lhe uma estalada. Sinto uma pontada de raiva. Chego-me ao pé deles. Oi, o que se passa? Eles olham-me com desdém. O que é que queres pirralho? A minha raiva vai crescendo. Não sou nenhum pirralho, perguntei o que é que se estava a passar. Eles riem-se um para o outro. O gozo presente nos seus olhos enfurece-me. Miúdo, vai dormir e não nos chateies! Penso rapidamente, o que quer que o outro rapazolas tenha feito não pode ser assim tão mau para duas pessoas estarem a ameaçá-lo, mas não posso lutar contra eles sozinho. De repente o que tinha estado calado olha-me com preocupação. Começa a segredar para o outro. As suas caras são agora de desprezo. Lançam-me algumas blasfémias. Perco o controlo e quando vejo um deles está a sangrar do nariz. O que me havia falado antes olha-me com fúria. De repente puxa-me pelo colarinho e lança-me. A minha cabeça bate nos caminhos-de-ferro do comboio. Da vala consigo vislumbrar os rostos dos dois adolescentes. Algo está mal. Estão assustados. O meu olhar desce das suas caras e pousa à minha frente. Algo brilhante banha a minha cara e um ruído ensurdecedor preenche os meus ouvidos. TUM-TUM! O comboio avança devagar em relação à correria da minha mente. Os meus olhos perdem a cor e por um momento não sou nada, nem ninguém. Uma sombra passa diante dos meus olhos com uma forma assustadora, mas é consumida pelo brilho dos faróis do comboio que se aproximam; algo agarra o meu colarinho... A luz do comboio apoderou-se dos meus olhos; oiço um sussurro de força... O som das rodas e a claridade preenchem-me completamente. A cauda de um casaco preto passa rente aos meus olhos.
Estou vivo… Os meus olhos ainda não recuperaram a sua luz. Estou de joelhos no chão da paragem. Muito lentamente olho para a vala das linhas do caminho-de-ferro ao meu lado. Viro-me ainda mais lentamente para a minha frente. Sei que estou a chorar pois o vento da noite corta-me nos caminhos abertos pelas lágrimas. Diante de mim está um homem vestido de preto a tentar recuperar o fôlego. Jo-João… A minha voz treme demasiado. Sinto uma dor no cimo da cabeça. Já disse que para si é Professor!  Uma visão inacreditável está diante dos meus olhos. Ele está a sorrir. E não era daqueles sorrisos sádicos que às vezes os professores deitam aos alunos quando lhes mandam carradas de trabalhos de casa. Era um sorriso quente… A minha expressão contrai-se e choro como se não houvesse amanhã. O meu rígido professor vira-se de repente e apenas diz: Anda, amanhã teremos tempo suficiente para percebermos o que é que andavas aqui a fazer a estas horas da noite. Se eu acordar a madame Luísa contigo nesse estado já ninguém lá em casa conseguirá ter uma boa noite de sono! Aceno um sim instantâneo. Era a primeira vez que ele me tratava por tu. As minhas pernas fraquejavam quando me tentei por em pé, por isso levou-me às cavalitas. Nas suas costas o seu casaco preto parecia o céu negro no qual eu poderia desenhar as estrelas que quisesse.

Estava eu, agora, abraçado ao homem que me tinha salvado a vida, mas a sua verdadeira proeza para comigo era de facto muito mais valorosa. Devo muito ao João (que á medida do meu crescimento fora desistindo de que eu lhe chamasse Professor), e acho que o momento em que me apercebi disso pela primeira vez foi de facto aquele. Quando ele me lançou aquele olhar orgulhoso, mas sempre na sua expressão calma, à medida que me observava de cima a baixo. Depois de ter feito comentários semelhantes aos da madame, tentou pronunciar uma pergunta mas esta, com aquele gesto bondoso típico do seu traço, interrompeu-o argumentando que eu ainda não tinha descansado, para além de que precisava urgentemente de um banho e uma cortadela ao cabelo. Ao se aperceber do meu aspeto, bem como do cheiro com que eu agora lhe impregnava a porta principal, esbugalhou um pouco os olhos e acenou um sim instantâneo. Aqueles sorrisos, aquelas vozes que me enchiam por completo a alma como se estivesse a ser embalado, aqueles rostos dos quais dia, após dia os meus olhos ansiavam ver, embebedaram-me de tal maneira naquela pura alegria que eu não pude reparar, ou talvez me tenha negado a perceber por puro egoísmo, que estas pessoas que eram as que o meu coração mais queria, ainda não se tinham apercebido de que eu não dissera uma única palavra desde que chegara. E não era uma simples falta de tema que me impedia. Era o simples medo de que aquele estado tão puro e transparente com que eles me haviam presenteado pudesse também transparecer o meu coração e que quando eu falasse, nada além de lamúrias e lágrimas pudessem sair, sem que mesmo antes eu pudesse ter dito: “Cheguei a casa.”

segunda-feira, 13 de maio de 2013

Eu Voei!

Deixo-vos hoje um texto para pensarem e sentirem. Como já faz muito tempo que aqui não venho, espero que apreciem com toda a vossa alma e analisem com as vossas mentes as linhas que escrevo até se encontrarem sediados, e mais uma vez, prontos para a vida!


Eu Voei!

Hoje quando acordei decidi que iria contar esta história. Talvez por que hoje acordei a espreguiçar-me e a dizer para as paredes Bom dia… Não. Deve ser por algo diferente. Eu acordo sempre assim... De qualquer modo, apeteceu-me contar esta história, e deixem-me dizer-vos que esta é das poucas, que eu não consigo analisar sem me vir de imediato um sentimento agradável de nostalgia e comoção. Não fiquem a pensar que é uma daquelas histórias de primeiro amor ou algo assim. Para mim esta é muito mais profunda do que qualquer outra que eu tenha guardado na alma. Portanto, e como, por estranho que pareça, não tenho a certeza se é imaginada ou real, por que a realidade destas pequenas coisas é tão e demasiado efémera para caber num coração que esteja alargado pelo sonho, que nem sempre se consegue distinguir estes dois mundos onde por vezes as nossas crenças ficam repartidas. Era quando eu tinha cinco anos (mas não tenho a certeza, pois mesmo hoje me é difícil dizer a minha idade) e estava a desenhar no corredor da entrada do apartamento dos meus pais. Era uma casa bastante simples; uma sala, uma cozinha, uma casa de banho e dois quartos. O corredor vinha desde a porta principal onde de seguida se dividia em dois formando um par de ângulos retos perpendiculares. Uma extremidade dava logo para o quarto dos meus pais, enquanto que a outra abria caminho para as restantes divisões. Eu estava sentada mesmo em frente à porta do meu quarto que era paralelo ao dos meus pais. Não é para me gabar, mas desde pequena que eu sabia que os meus rabiscos eram os melhores da turma, talvez de todo o infantário. E era por isso que eu gostava de desenhar cada vez mais, pois mesmo que fosse a fingir, a minha mãe dizia-me sempre que eu era a melhor artista que ela alguma vez vira e o meu pai brincava comigo aos críticos sempre apontando defeitos imaginários nos meus desenhos já por si abstratos. Por isso eu encontrava-me ali a disfrutar dos meus lápis novos no meu caderno de folhas improvisado. Mas depois não sei o que se passou, pois a memória que é uma nuvem de fumo na qual se projetam as imagens, parece transformar-se numa neblina que apesar de bonita e calma me deixa inquieta e lamentada, ao mesmo tempo que observo os borrões de cores que ela deixa passar pura e simplesmente sem se manter forte o suficiente para que o saber se solidifique. Apenas me lembro de que estava levantada e a rir, a rir com aquele ar de traquina que é o melhor riso que uma criança, que parte em descoberta ao mundo pode ter! E então… sempre muito devagarinho… e com aquele sorriso nos lábios… levantei um pé. Mas levantei-o bem alto até que este ficasse ao nível do meu joelho, embora que para isso tivesse que dobrar a perna. Mas então estiquei os braços para a frente, e surpreendentemente, não caí. Sentia-me bem como se o ar fosse água e por isso atrevi-me a ir mais longe! Sempre muito devagarinho… e com aquele sorriso nos lábios… levantei o outro pé. Mas levantei-o com um pequeno salto e lancei logo a perna para trás pois eu sabia que se apenas o levanta-se me estatelaria logo no chão! Fiz um pequeno movimento com os braços e as pernas em direção ao teto. Eu conseguia voar, voar a sério como as princesas ou as bruxas dos livros que a mamã lia! E então comecei a dar voltas ao corredor, pois apercebi-me que se ficasse parada depressa cairia. Ria-me, ria-me muito com aquele sorriso traquina, pois se o não sabia, pensava que era a primeira pessoa a saber voar.
Voei durante semanas, meses ou anos. Nunca me lembrava da dizer à minha mãe ou ao meu pai que voava. Nunca me parecera necessário. Acho que ainda o tentei dizer uma ou outra vez mas não me lembro, nem das palavras que usei, nem das respostas dos meus pais. Apenas me lembro de voar, com uma sensação de liberdade que me percorria o corpo pequenino e arredondado. Lembro-me das paredes do corredor lá em cima ao pé do tecto, onde eu colocava as minhas mãos e os meu dedos para me ajudarem a dar a curva. E então sempre a balançar-me para não cair, eu ia voando às voltas pelo corredor do apartamento. Nunca tive medo naquele tempo em que eu sabia que podia voar, e por isso tentava começar o meu voo de todas as maneiras de que me lembrava. Como era pequenina e desprovida de imaginação apenas me ocorreram duas: A maneira com que voara pela primeira vez a qual sempre acompanhada com a sensação de que o ar se transformava em ondas deleitosas por debaixo da minha barriga; e a saltar com os pés para a parede. O meu impulso chegava a ser tão alto que eu batia com a palma dos pés na obreira da porta! E eu a uma dada altura já não sabia se voava de vez em quando ou se passava o tempo todo a dar voltas ao tecto do corredor. O tempo fora-se confundido, mais e mais, transformando-se num deserto onde ninguém é capaz de dizer qual foi a areia que apareceu primeiro trazida pelo vento do destino. E então um dia eu descobri que já não me lembrava de como voar.
Não vos posso assegurar ser isto é o que vos quero contar, mas penso que antes de me deparar com este facto triste, que ainda hoje eu lamento e tento contornar, eu finalmente conseguira contar à minha mãe que voara. Dissera-o no passado e a propósito de outra conversa, enquanto ela lavava os pratos: “Mãe eu voei sabias? Ali no corredor. É incrível! Tu voas?” A minha mãe continuou a lavar os pratos: “Não devias estar só a sonhar querida?” Eu teimei: “Não, tenho a certeza de que voei, foi ali mesmo, ali ao fundo do corredor.” A sensação que eu tinha ao mesmo tempo que a tentava convencer até que ela concordasse, com uma cara de quem tinha que ter paciência para crianças,... nunca a esquecerei. Sentia-me algemada, triste e desesperada. Queria poder ter voado para lhe mostrar, mas uma sensação dormente e estranha tal qual a preguiça não me deixou. Parecia não me poder lembrar de que  podia efetivamente fazê-lo. Sentia um vazio doloroso no peito que eu, na minha pequena e curiosa idade, não parecia poder explicar. E então, no dia seguinte, fui para o corredor e tentei levantar uma perna e esticar os braços para a frente. Não senti aquele sensação envolvente no meu corpo… não me atrevi a levantar a outra perna. Era escusado, pois fora medo e não felicidade ou esperança que eu sentira, quando a ponto de levantar, com um salto, o outro pé.
Nunca mais voei, e se o fiz, deve ter sido apenas uma vaga sensação imitada do que o que experimentei na minha infância. Confesso-vos que esta História, decidi sobretudo contá-la para mim e para os pequenos personagens que vivem ao meu redor e que de vez em quando vislumbro apenas um borrão da sua correria pelo mundo. Queria que ambos pudessem explicar à pequena criança confusa e talvez à minha parte que deseja ainda hoje voar, o porquê de não o conseguirmos. No entanto à mediada que escrevia o meu coração encontrou a resposta. Mas esta perdi-a no meio da correção gramatical das minhas memórias, se bem que espero um dia poder voltar a encontra-la. Quem sabe a menina pequenina apareça nos meus sonhos livre para sempre dela,... e a voar.

quinta-feira, 28 de março de 2013

3º " O Coração das Sombras


Depois de atravessarmos aquele grande jardim avistámos umas escadas brancas de mármore que davam para umas grandes portas de madeira adornadas com efeitos dourados. Toda a mansão era branca e ao fundo das escadas a visão de qualquer pessoa ficaria turva com tamanha beleza! Eu apenas ficara habituado a apreciar aquela casa forte que resplandecia quase orgulhosamente, quando na verdade toda a sua estrutura, com a exceção da entrada, era de uma beleza que cercava o elementar. As fachadas das janelas e uma grande varanda ampla que pertencia à sala no andar de cima, logo em cima das portas de entrada eram quase tudo o que adornava à primeira vista a casa. Mas o que a revestia e lhe dava um aspeto original e único era uma trepadeira de flores de seda, bem cuidada de forma a não se emaranhar nem nas portas e janelas e alguns desenhos repletos de curvas singulares e outros traços que todos juntos se pareciam fundir às folhas verdes escuras como se fossem o dourado do próprio sol que elas possuíam.
Entrar naquela casa foi uma como uma provação: sentia-me aliviado, tanto que chegava a ser assustador. Era como se precisasse de me agarrar às paredes para não sucumbir numa enorme espiral negra que me embalaria tão suavemente que o meu terror vinha ao de cima por não saber se poderia; conseguiria escapar dela. Bastava um segundo sequer de completa serenidade para que eu começasse a divagar por entre os meus pensamentos. Era preciso olhar para a realidade; «que esta estivesse à minha frente» foi o maior dos meus desejos. Os pensamentos e especulações de um Homem tornam-se verdadeiramente assustadores no momento em que nos apercebemos de que não conseguimos olhar nos olhos da imagem refletida no espelho…
 Lancei o meu olhar para as paredes do interior da casa. Ao entrar a primeira reação de uma pessoa seria espanto. Ao contrário do exterior e da sua beleza clara, dentro da mansão o brilho de diversos quadros, candelabros, móveis e outras obras de arte inundavam-na, deixando-a requintada e graciosa. Era-nos claro o contraste que existia entre as duas partes da mansão, bem como brusca a miragem do que nos parecia ser, o refúgio do Homem e de todas as excentricidades e excessos que com ele andam. Bem, não havia escolha. O senhor da casa sempre gostou de encarar os jogos e desafios que a sociedade excluía, na sua tentativa vacilante de se tornar mais perfeita. De repente a Madame Luísa chamou-me a atenção a algo, despertando-me do meu reconhecimento meticuloso. Foi com um sorriso tonto que reparei num mordomo que limpava uma jarra enfeitada com um pano. Por um momento ele olhou para mim com um ar abismado, como se visse um fantasma. Mas o seu rosto depressa se abriu num sorriso que teria sido impossível conter. Olhou bem para mim.
- Como pôde demorar tanto? Faz ideia de como a Madame estava preocupada consigo? – a maneira como escondia o riso tornava a sua fala muito menos rígida.
Tinha a cara vermelha de emoção mas não se permitiu a chorar. Abraçou-me fortemente e o toque levou-me uma lembrança.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

2º Capítulo de "O Coração das Sombras"


A vila era pequena e servia como ponto de abastecimento de uma linha de comboios. Poderia ter desembarcado logo ali, mas sentira uma necessidade muito grande de a ver ao longe. Tinha vastos campos que agora dourados ao fim da tarde pareciam mesmo ter roubado a luz do sol. Passei por eles agora concentrado no meu dever que era chegar antes que a noite assombra-se as ruas. Não sabia se durante todo aquele tempo eles esperavam a minha pessoa ou uma carta… Estava abafado e ao passar pelas calçadas brancas que se encontravam junto á estação uma sonolência e silêncio apoderava-se daqueles que por ali andavam deixando até que ao longe se ouvissem os ponteiros do relógio que sempre certos diziam o tempo que é a única grandeza dos homens apressados. O polícia que andava pelas ruas cumprimentava as senhoras que agora iam fechando os mercados e arrumando as tendas para que quando o sol despontasse de novo começassem a gritar os incríveis preços aos que a população há muito estava habituada. Continuei a andar. As laranjeiras plantadas nos caminhos emanavam um cheiro calmo e tudo parecia tranquilo sem ninguém se ter apercebido do meu retorno. Não os culpei. No tempo em que estive ausente não me importara com aparências. O meu cabelo crescera cobrindo-me o pescoço, apenas tomara um duche com uma mangueira e as minhas roupas estavam como as de um mendigo, principalmente o sobretudo preto que me cobria. Senti um puxão no ombro e olhei para trás. Vi uma senhora com uma cara rechonchuda e já alguns cabelos brancos que me olhava franzindo a testa com os óculos pendurados.

- É o menino… Oh meu deus… é,… é o menino!- exclamou.

  Sem se importar muito com o meu cheiro, ou barba por fazer, abraçou-me o pescoço com um braço enquanto afagava os meus cabelos, já despenteados, com o outro. Como era baixinha tive que me curvar e pendurar o meu queixo no pescoço dela enquanto ela muito emocionada falava já aos tropeções, á medida que toda a sua lógica se perdia. Eu apenas olhava para o chão onde se encontrava o cesto com as compras tombado, talvez tão confuso como eu.

- Mas, não disse nada… Olhe-me para esta vestimenta! Não nos avisou… Depressa temos que voltar a casa. Toda a gente tem estado preocupada. Tem que tomar um banho… olhe-me este cabelo todo! Como está magro meu Deus. Ai se o senhor o visse nesse estado, nem sei como ficaria…

Agarrou-me a mão e arrastou-me até casa. Sentia-me como um rapaz a ser levado depois de ter feito uma asneira qualquer e ter ficado sujo. Não deixava de ser uma situação engraçada… Aquela senhora era a Madame Luísa. Reconhecera-a pela voz terna e preocupada que ela muitas vezes me dirigia. Também o modo atrapalhado com que ficava ao ver-me magoado me era familiar. Era a governanta da casa para onde me levava e para a qual há poucos momentos eu me dirigia silencioso e preocupado. Talvez se fosse alguém a levar-me, a mostrar-me aonde eu pertencia, tudo ficasse mais fácil. Fora ela que me criara como mãe quando fui trazido para aquela mansão com seis anos. Sempre fora carinhosa e preocupada apesar de ser contra a política de fechar uma criança em casa, sem que nunca apreciá se as ruas da vila e brincasse com os outros rapazinhos. Infelizmente para ela nunca me dei bem com a maioria dos rapazes da minha idade e quando saía ou era para ir às compras com a Madame, dar passeios com o senhor ou sentar-me ao pé das laranjeiras a ler. Começámos a subir a encosta aonde as casas desapareciam para dar origem a um jardim alguns metros à frente. Quando se entrava, ao olhar para as rosas de todas as cores, e os repuxos de mármore,... sabia-se que se tinha entrado na casa do homem mais rico, não só da Vila mas talvez da cidade.

Tátá

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

O coração das Sombras - Apresentação


  Aqui têm o primeiro capítulo desta minha história! Logo no começo não é muito interessante, mas eu prometo que mais tarde se tornará algo que pelo menos vos fará pensar um pouco. Bem, pelo menos é essa intenção. Se alguém notar que os capítulos são demasiado grandes ou pequenos, por favor avisem. Não vos chateio mais. Faço figas para que gostem!
...
É uma tarde leve, e uma brisa fresca e um sol acolhedor poderiam chegar para não pensar em mais nada, mas lá fora viaja uma folha vermelha, uma folha pequenina na qual ninguém repara pois a vida apesar de algo magnífico é muito curta para que alguns a possam apreciar. Reparem nela… O próprio sol deu-lhe um pouco da sua luz como de propósito por a estar a observar. Num momento repentino ela desce por entre as árvores e passa rente por entre os seus troncos como se os tivesse a desafiar, e então como se de um milagre se tratasse ela volta ao de cima passando por entre as copas de ramos que com o vento a saúdam. É lindo… ela voa, viaja,… mas ninguém lhe pergunta o que viu ou para onde vai. Está completamente sozinha, e mesmo nós quando lhe tirarmos os olhos de cima se no segundo a seguir ela arder completamente, a mais pura e triste das verdades, é que, não sentiremos a sua falta. Provavelmente será assim até o vento deixar de soprar para ela e a pequena folha cair no chão e deixar que a pisem; os seus ruídos serão então as histórias dos lugares por onde passou. Mas é ela que agora me observa. Passa por mim e eu continuo em frente no meu próprio caminho, uma rua de xisto improvisada por uma pequena vila. Apressava-me, lutando contra o tempo que dentro de poucas horas faria escurecer. Poderia fazer aquele caminho com uma venda posta só que quando alguém nos espera é sempre bom ter o sol nas costas para dar a impressão de que não demorámos muito tempo a voltar. Com uma pequena visão da vila fui abrandando o passo e não tardei a passar o posto de vigia que ficava numa das colinas atravessadas pelas pequenas muralhas á volta de um inexistente castelo. Podia ver praticamente toda a vila dali. Todos os seus habitantes pareciam atarefados, mas aquele era um lugar pequeno e havia no esforço das pessoas alegria e uma sensação de dever feito, pois sabiam bem que os seus esforços serviriam para se ajudarem uns aos outros. O guarda da vigia cumprimentou-me e apesar de toda a ansiedade que sentia para chegar o mais depressa possível, continuei a andar normalmente com o peito demasiado cheio de infinitas coisas que não me deixavam respirar quanto mais decidir a minha jornada. Uma parte de mim queria sair dali. Observei o brilho da relva que despontava ao longo das casas. Os campos naquele ano pareciam ter crescido bem. Fiquei algum tempo ali a pensar. Mas depois comecei a correr e a correr, ainda eu não tinha escolhido o meu destino. Acho que fora algo que ninguém me deu possibilidade de escolha. Este parecia que me conseguiria esconder da realidade e isso era algo que eu aceitaria às custas da minha vida. Corri ainda mais; apercebi-me de que tinha chegado a casa…  

Tátá