A madame soltou um grito de aflição e angústia. Também eu
estava aflito a tremer de medo, enquanto cobria com a mão a parte direita
superior da minha face. Tinha-me esquecido, por momentos, da razão da minha
ausência. Num gesto de desespero e numa tentativa de escapar ao olhar
perturbado da madame, que agora estava estendida para trás com as mãos a
apoiarem o corpo e a soltar gemidos de medo, levantei-me apressado e comecei a
correr tão desajeitadamente que por pouco não tropecei. Ela ficou ali,
quieta ainda a pensar no que acontecera. Por um momento, olhou para a tesoura
caída no chão e lembrou-se, absorta, no que a tinha feito gritar. E então com
uma expressão de horror que mesmo assim não se comparava em nada à aflição que
sentia levantou-se apressada e sem parar para sacudir a saia, foi a sua vez de
desatar numa correria desenfreada. Chegou à porta da mansão e começou a chamar
na voz de uma súplica:
-
João! João! Depressa! O... O menino!
- Que aconteceu mulher?!
Luísa chegou-se ao pé do mordomo que se
encontrava no final das escadas mantendo uma expressão confusa e atrapalhada
quando se viu agarrado pela madame.
- O menino... O Lu... O Lucas... Acho
que... Um-uma ferida...
- Acalme-se mulher!... Vamos tentar de
novo. O Lucas não se pode já ter metido em sarilhos. Acalme-se!... Vá, conte-me
o que aconteceu.
A madame Luísa contou-lhe a saída até ao jardim para uma
rápida cortadela ao cabelo. Mas à medida que lhe esclarecia o que havia visto e
todas as suas suposições bem como medos o sorriso no rosto de João foi
desaparecendo tal como o sol apagado pelas nuvens da tempestade daquele dia.
Estava encostado a uma árvore muito grande e que sempre
ouvira dizer ser mais velha do que a própria vila. Era uma amendoeira que se
encontrava nas traseiras da casa. Era uma árvore forte mas mais do que isso
bela. Extraordinariamente bela. Desde pequeno que gostava de dormir as minhas
sestas encostado àquela árvore debaixo das flores brancas a cair muito
devagarinho com o brilho do sol... Mas agora estava a chover e eu estava
atormentado por dúvidas e medos. E tremia. Tremia ao relembrar-me da cara que a
madame fizera ao olhar-me. Os seus olhos que sempre me viam com ternura e amor
estavam agora possuidores de um horror indescritível... Abraçava as pernas e
pendia a cabeça entre os joelhos. Não chorava. Tinha os olhos meio abertos e a
única água que me caía pela cara era a da chuva. Sentia-me partido ao meio,
vazio... Para chegar à amendoeira era preciso percorrer um labirinto de
arbustos. Durante todo o percurso eu não pensara,... apesar de ter passado
tanto tempo os meus pés caminhavam habituados a todos os recantos que me eram
familiares. Já devia lá estar há uma hora. Tudo o que eu podia fazer era contar
os segundos que passavam para não me perder da minha mente. Ouvi passos
apressados, poderia jurar que havia pessoas a correr no labirinto. Tinha o
olhar fixado no chão, sempre na mesma posição de culpa. Mas não conseguia
chorar. O mordomo apareceu na saída do labirinto a ofegar. Devia ter procurado
por muitos sítios antes de se lembrar que eu devia estar ali. Ao ver-me começou
um passo apressado na minha direção. Agarrou-me a cabeça com as duas mãos de
cada lado e levantou-a. Pôs-me direito contra a casca da árvore e agarrou-me o
ombro, depois com a mão livre afastou-me a franja do lado direito da cara...
Também ele ficou assombrado mas era espanto que eu via na sua cara. Talvez ele
conseguisse esconder melhor as emoções do que a Madame… Mas com ele a fixar o
olhar em mim eu não tremia. Agora estávamos a olhar cara a cara, homem a homem.
Dentro de mim lancei-lhe um olhar desafiante, mas a minha cara continuava
inexpressiva como a de um fantasma. O mordomo caiu de joelhos à minha frente e
libertou-me a face, ficando a fixar-me. Seguiu-o com o olhar, com os lábios a
desenhar uma linha fina e inexpressiva. Quando a incredulidade desapareceu
ficou a olhar-me com uma expressão de quem ouve tentando dar um conselho que
pudesse acabar com os problemas das pessoas. Demorou-se. O problema era fácil
de resolver. Bastava seguir com a vida, ouvir a minha explicação... Mas ele entrelaçara
comigo uma espécie de amizade das quais as pessoas tomam consciência sem dizer
uma palavra. Isso fazia com que ele já não conseguisse raciocinar, pois este
ato tende a desaparecer quando nos aproximamos de uma pessoa e ainda para mais
quando temos o desejo de a proteger. A nossa boca abre-se e quando o que
precisamos é de algum sábio, damos connosco a ser simplesmente mais uma alma
humana. Era agora nessa situação que se encontrava o mordomo: com um sentimento
de perda que o deixava confuso e talvez até triste e assustado. Demorou-se mas
acabou por conseguir.
- Bem,
por esta não esperava menino. Já estranhava a sua ausência prolongada e o seu
ar mortiço, mas nunca pensei. Parecia óbvio mas nunca pensei...
Levantou-se.
Apenas reparei com um sentimento de choque que me tratara por você.
- Isto
sou eu a supor menino Lucas, terá que me contar por palavras suas e como deve
de ser o que foi que na verdade aconteceu. Mas por agora... – parou. Parecia-me
que lhe custava pensar no que fazer e ainda mais articular as frases que me
dirigia - ...a Madame está preocupada… Além disso está ensopado da cabeça aos
pés...
Eu tinha a cara virada para o céu. Nunca me preocupara muito
com aspetos e mesmo com algo daquele tamanho, eu achava que poderia viver
normalmente, pelo menos no que me tocava a mim. Mas todas as perguntas por
detrás daquilo... Não me imaginava a respondê-las com um sorriso sarado. Estava
assustado por tudo o que vira. Levei a mão até à face. Continuava absorto no
que fazia. O sangue seco à volta dela deu-me vontade de a escarafunchar e acho
que o acabei por fazer mesmo pois o João voltou a correr para ao pé de mim e
agarrou-me o braço afastando a mão da minha cara. Virei-me para ele lentamente.
Acho que desde a chegada do mordomo que eu não demonstrara sentimentos nenhuns.
Ele estava assustado. Olhava para mim e eu podia vislumbrar nos seus olhos um pequeno
fio de sangue a escorrer-me da cara. Parecia uma lágrima impossível na ausência
de uma alma e de um olho para a chorar.