segunda-feira, 1 de julho de 2013

6º " O Coração das Sombras

A madame soltou um grito de aflição e angústia. Também eu estava aflito a tremer de medo, enquanto cobria com a mão a parte direita superior da minha face. Tinha-me esquecido, por momentos, da razão da minha ausência. Num gesto de desespero e numa tentativa de escapar ao olhar perturbado da madame, que agora estava estendida para trás com as mãos a apoiarem o corpo e a soltar gemidos de medo, levantei-me apressado e comecei a correr tão desajeitadamente que por pouco não tropecei. Ela ficou ali, quieta ainda a pensar no que acontecera. Por um momento, olhou para a tesoura caída no chão e lembrou-se, absorta, no que a tinha feito gritar. E então com uma expressão de horror que mesmo assim não se comparava em nada à aflição que sentia levantou-se apressada e sem parar para sacudir a saia, foi a sua vez de desatar numa correria desenfreada. Chegou à porta da mansão e começou a chamar na voz de uma súplica:
- João! João! Depressa! O... O menino!             
- Que aconteceu mulher?!
Luísa chegou-se ao pé do mordomo que se encontrava no final das escadas mantendo uma expressão confusa e atrapalhada quando se viu agarrado pela madame.
- O menino... O Lu... O Lucas... Acho que... Um-uma ferida...
- Acalme-se mulher!... Vamos tentar de novo. O Lucas não se pode já ter metido em sarilhos. Acalme-se!... Vá, conte-me o que aconteceu.
A madame Luísa contou-lhe a saída até ao jardim para uma rápida cortadela ao cabelo. Mas à medida que lhe esclarecia o que havia visto e todas as suas suposições bem como medos o sorriso no rosto de João foi desaparecendo tal como o sol apagado pelas nuvens da tempestade daquele dia.

Estava encostado a uma árvore muito grande e que sempre ouvira dizer ser mais velha do que a própria vila. Era uma amendoeira que se encontrava nas traseiras da casa. Era uma árvore forte mas mais do que isso bela. Extraordinariamente bela. Desde pequeno que gostava de dormir as minhas sestas encostado àquela árvore debaixo das flores brancas a cair muito devagarinho com o brilho do sol... Mas agora estava a chover e eu estava atormentado por dúvidas e medos. E tremia. Tremia ao relembrar-me da cara que a madame fizera ao olhar-me. Os seus olhos que sempre me viam com ternura e amor estavam agora possuidores de um horror indescritível... Abraçava as pernas e pendia a cabeça entre os joelhos. Não chorava. Tinha os olhos meio abertos e a única água que me caía pela cara era a da chuva. Sentia-me partido ao meio, vazio... Para chegar à amendoeira era preciso percorrer um labirinto de arbustos. Durante todo o percurso eu não pensara,... apesar de ter passado tanto tempo os meus pés caminhavam habituados a todos os recantos que me eram familiares. Já devia lá estar há uma hora. Tudo o que eu podia fazer era contar os segundos que passavam para não me perder da minha mente. Ouvi passos apressados, poderia jurar que havia pessoas a correr no labirinto. Tinha o olhar fixado no chão, sempre na mesma posição de culpa. Mas não conseguia chorar. O mordomo apareceu na saída do labirinto a ofegar. Devia ter procurado por muitos sítios antes de se lembrar que eu devia estar ali. Ao ver-me começou um passo apressado na minha direção. Agarrou-me a cabeça com as duas mãos de cada lado e levantou-a. Pôs-me direito contra a casca da árvore e agarrou-me o ombro, depois com a mão livre afastou-me a franja do lado direito da cara... Também ele ficou assombrado mas era espanto que eu via na sua cara. Talvez ele conseguisse esconder melhor as emoções do que a Madame… Mas com ele a fixar o olhar em mim eu não tremia. Agora estávamos a olhar cara a cara, homem a homem. Dentro de mim lancei-lhe um olhar desafiante, mas a minha cara continuava inexpressiva como a de um fantasma. O mordomo caiu de joelhos à minha frente e libertou-me a face, ficando a fixar-me. Seguiu-o com o olhar, com os lábios a desenhar uma linha fina e inexpressiva. Quando a incredulidade desapareceu ficou a olhar-me com uma expressão de quem ouve tentando dar um conselho que pudesse acabar com os problemas das pessoas. Demorou-se. O problema era fácil de resolver. Bastava seguir com a vida, ouvir a minha explicação... Mas ele entrelaçara comigo uma espécie de amizade das quais as pessoas tomam consciência sem dizer uma palavra. Isso fazia com que ele já não conseguisse raciocinar, pois este ato tende a desaparecer quando nos aproximamos de uma pessoa e ainda para mais quando temos o desejo de a proteger. A nossa boca abre-se e quando o que precisamos é de algum sábio, damos connosco a ser simplesmente mais uma alma humana. Era agora nessa situação que se encontrava o mordomo: com um sentimento de perda que o deixava confuso e talvez até triste e assustado. Demorou-se mas acabou por conseguir.
                - Bem, por esta não esperava menino. Já estranhava a sua ausência prolongada e o seu ar mortiço, mas nunca pensei. Parecia óbvio mas nunca pensei...
   Levantou-se. Apenas reparei com um sentimento de choque que me tratara por você.
                - Isto sou eu a supor menino Lucas, terá que me contar por palavras suas e como deve de ser o que foi que na verdade aconteceu. Mas por agora... – parou. Parecia-me que lhe custava pensar no que fazer e ainda mais articular as frases que me dirigia - ...a Madame está preocupada… Além disso está ensopado da cabeça aos pés...

Eu tinha a cara virada para o céu. Nunca me preocupara muito com aspetos e mesmo com algo daquele tamanho, eu achava que poderia viver normalmente, pelo menos no que me tocava a mim. Mas todas as perguntas por detrás daquilo... Não me imaginava a respondê-las com um sorriso sarado. Estava assustado por tudo o que vira. Levei a mão até à face. Continuava absorto no que fazia. O sangue seco à volta dela deu-me vontade de a escarafunchar e acho que o acabei por fazer mesmo pois o João voltou a correr para ao pé de mim e agarrou-me o braço afastando a mão da minha cara. Virei-me para ele lentamente. Acho que desde a chegada do mordomo que eu não demonstrara sentimentos nenhuns. Ele estava assustado. Olhava para mim e eu podia vislumbrar nos seus olhos um pequeno fio de sangue a escorrer-me da cara. Parecia uma lágrima impossível na ausência de uma alma e de um olho para a chorar.  

5º " O coração das sombras

Quem poderia imaginar,… quem poderia sequer supor que seriam eles quem mais magoados ficariam por me verem esconder o meu sofrimento. Se o tempo voltasse atrás, eu teria agido como um miúdo egoísta e teria pedido que não me deixassem durante a noite onde as sombras revelam o que há nos olhos dos homens. Mas eu apenas sei contar o tempo e ele apenas me sabe ajudar a contar. Os meus afazeres higiénicos ficaram pois então para o dia seguinte. A noite foi antes utilizada para que eu pudesse descansar (embora numa cama antiga de outro empregado, pois fora-me negado o meu quarto devido ao meu estado referido pela Madame como: “Pior que um mendigo”). Mas penso que também a madame e o mordomo tiveram que fazer um esforço para dormir bem, culpando o sono de alguma visão estranha por debaixo da minha franja encaracolada e comprida, preferindo pensar e crer na minha sujidade.

 A Madame Luísa atendeu as minhas necessidades com aquele ar sempre meigo dela e, depois de ter decidido que seria mais fácil eu tomar banho com maior parte do cabelo e nós já cortados,  levou-me até ao pátio onde por entre carreiros de rosas e arbustos, com um lençol numa mão e a tesoura noutra chegou a um descampado de erva ainda dentro do grande jardim. Apenas vendo a cadeira de jardim branca ali isolada ao pé de uma árvore pequenina que ainda me dava pelos joelhos eu podia dizer que estávamos no nosso sítio secreto (escondido do senhor e do João) onde ambos passávamos tardes a ler ou a jogar cartas. Tive pena daquela senhora meiga a quem eu por vezes, por engano ou meiguice, chamava mãe. Ela ainda me vislumbrava, me queria, como o menino que andava à sua volta a pedir brincadeiras e jogos tal qual um pirralho mimado. Eu já não era assim... Há já muito tempo que fora obrigado a crescer para enfrentar o mundo e todos os seus defeitos cruéis. Para lutar por ele... A madame sentou-me na cadeira e pousou o alguidar de água juntamente com a tesoura na relva. Depois estendeu um grande lençol que prendeu às costas da cadeira. Começou-me a cortar lentamente o cabelo enquanto conversava para o ar acerca dos seus afazeres pondo aqui e ali uma queixa da qual o destinatário eu já não sabia se era o meu cabelo emaranhado ou a senhora Rosa da mercearia. Existiam cabeleireiros na vila mas a madame insistia sempre em ser ela a cortar-mo. Acho, e agora talvez tentando presentear-me com este pequeno prazer, que gostava de passar os dedos pelos meus cabelos, afagando-me várias vezes a cabeça. Quando acabou de mo cortar a parte de trás, sacudiu-me as costas e dirigiu-se para a parte da frente da cadeira. A minha franja cobria grande parte da minha testa bem como os olhos. Eu e a madame esboçávamos um pequeno sorriso partilhado. Não sei como é que ela não tinha reparado quando me abraçou. Talvez fosse da emoção... Mas a verdade é que quando me lembrei de que já não era assim, era tarde demais... 

4º " O Coração das Sombras

Estava escuro. Que dia é hoje? Ah pois… Levanto-me da cama. O meu quarto parece uma aglomeração de sombras, mas não tenho medo. Só um bocadinho não vai fazer mal não é? Rapidamente visto uns calções e uma camisa. Abro a janela e olho para as luzes da estação. Vamos lá! Uma espécie de orgulho preenche-me ao saltar da janela para o toldo do telhado. Mais um grande salto! Agarro-me à coluna e começo a escorregar em caracol até ao chão. Liberdade!! Vou a correr até à estação sem parar. Penso nas aulas de Geografia com a vara do professor de casaco preto. Corro mais depressa. Penso nas aulas de etiqueta com os gritos do educador de casaco de preto. Corro mais depressa e tropeço na minha velocidade impulsionada pela descida. Penso nas aulas de piano com os ouvidos rígidos do maestro de casaco preto. Mais depressa não é possível. Volto a pensar nas aulas de Geografia e no casaco preto. Tropeço mais uma vez e dou uma cambalhota da qual escapo com dificuldade. Continuo a correr até à estação.
Já está na hora de ir para casa e satisfeito com o meu passeio noturno clandestino começo a subida até a mansão, mas algo desperta a minha curiosidade e aproximo-me para ver melhor. É um miúdo. Dois adolescentes tapam o caminho de um rapazito. De repente um deles dá-lhe uma estalada. Sinto uma pontada de raiva. Chego-me ao pé deles. Oi, o que se passa? Eles olham-me com desdém. O que é que queres pirralho? A minha raiva vai crescendo. Não sou nenhum pirralho, perguntei o que é que se estava a passar. Eles riem-se um para o outro. O gozo presente nos seus olhos enfurece-me. Miúdo, vai dormir e não nos chateies! Penso rapidamente, o que quer que o outro rapazolas tenha feito não pode ser assim tão mau para duas pessoas estarem a ameaçá-lo, mas não posso lutar contra eles sozinho. De repente o que tinha estado calado olha-me com preocupação. Começa a segredar para o outro. As suas caras são agora de desprezo. Lançam-me algumas blasfémias. Perco o controlo e quando vejo um deles está a sangrar do nariz. O que me havia falado antes olha-me com fúria. De repente puxa-me pelo colarinho e lança-me. A minha cabeça bate nos caminhos-de-ferro do comboio. Da vala consigo vislumbrar os rostos dos dois adolescentes. Algo está mal. Estão assustados. O meu olhar desce das suas caras e pousa à minha frente. Algo brilhante banha a minha cara e um ruído ensurdecedor preenche os meus ouvidos. TUM-TUM! O comboio avança devagar em relação à correria da minha mente. Os meus olhos perdem a cor e por um momento não sou nada, nem ninguém. Uma sombra passa diante dos meus olhos com uma forma assustadora, mas é consumida pelo brilho dos faróis do comboio que se aproximam; algo agarra o meu colarinho... A luz do comboio apoderou-se dos meus olhos; oiço um sussurro de força... O som das rodas e a claridade preenchem-me completamente. A cauda de um casaco preto passa rente aos meus olhos.
Estou vivo… Os meus olhos ainda não recuperaram a sua luz. Estou de joelhos no chão da paragem. Muito lentamente olho para a vala das linhas do caminho-de-ferro ao meu lado. Viro-me ainda mais lentamente para a minha frente. Sei que estou a chorar pois o vento da noite corta-me nos caminhos abertos pelas lágrimas. Diante de mim está um homem vestido de preto a tentar recuperar o fôlego. Jo-João… A minha voz treme demasiado. Sinto uma dor no cimo da cabeça. Já disse que para si é Professor!  Uma visão inacreditável está diante dos meus olhos. Ele está a sorrir. E não era daqueles sorrisos sádicos que às vezes os professores deitam aos alunos quando lhes mandam carradas de trabalhos de casa. Era um sorriso quente… A minha expressão contrai-se e choro como se não houvesse amanhã. O meu rígido professor vira-se de repente e apenas diz: Anda, amanhã teremos tempo suficiente para percebermos o que é que andavas aqui a fazer a estas horas da noite. Se eu acordar a madame Luísa contigo nesse estado já ninguém lá em casa conseguirá ter uma boa noite de sono! Aceno um sim instantâneo. Era a primeira vez que ele me tratava por tu. As minhas pernas fraquejavam quando me tentei por em pé, por isso levou-me às cavalitas. Nas suas costas o seu casaco preto parecia o céu negro no qual eu poderia desenhar as estrelas que quisesse.

Estava eu, agora, abraçado ao homem que me tinha salvado a vida, mas a sua verdadeira proeza para comigo era de facto muito mais valorosa. Devo muito ao João (que á medida do meu crescimento fora desistindo de que eu lhe chamasse Professor), e acho que o momento em que me apercebi disso pela primeira vez foi de facto aquele. Quando ele me lançou aquele olhar orgulhoso, mas sempre na sua expressão calma, à medida que me observava de cima a baixo. Depois de ter feito comentários semelhantes aos da madame, tentou pronunciar uma pergunta mas esta, com aquele gesto bondoso típico do seu traço, interrompeu-o argumentando que eu ainda não tinha descansado, para além de que precisava urgentemente de um banho e uma cortadela ao cabelo. Ao se aperceber do meu aspeto, bem como do cheiro com que eu agora lhe impregnava a porta principal, esbugalhou um pouco os olhos e acenou um sim instantâneo. Aqueles sorrisos, aquelas vozes que me enchiam por completo a alma como se estivesse a ser embalado, aqueles rostos dos quais dia, após dia os meus olhos ansiavam ver, embebedaram-me de tal maneira naquela pura alegria que eu não pude reparar, ou talvez me tenha negado a perceber por puro egoísmo, que estas pessoas que eram as que o meu coração mais queria, ainda não se tinham apercebido de que eu não dissera uma única palavra desde que chegara. E não era uma simples falta de tema que me impedia. Era o simples medo de que aquele estado tão puro e transparente com que eles me haviam presenteado pudesse também transparecer o meu coração e que quando eu falasse, nada além de lamúrias e lágrimas pudessem sair, sem que mesmo antes eu pudesse ter dito: “Cheguei a casa.”