segunda-feira, 1 de julho de 2013

4º " O Coração das Sombras

Estava escuro. Que dia é hoje? Ah pois… Levanto-me da cama. O meu quarto parece uma aglomeração de sombras, mas não tenho medo. Só um bocadinho não vai fazer mal não é? Rapidamente visto uns calções e uma camisa. Abro a janela e olho para as luzes da estação. Vamos lá! Uma espécie de orgulho preenche-me ao saltar da janela para o toldo do telhado. Mais um grande salto! Agarro-me à coluna e começo a escorregar em caracol até ao chão. Liberdade!! Vou a correr até à estação sem parar. Penso nas aulas de Geografia com a vara do professor de casaco preto. Corro mais depressa. Penso nas aulas de etiqueta com os gritos do educador de casaco de preto. Corro mais depressa e tropeço na minha velocidade impulsionada pela descida. Penso nas aulas de piano com os ouvidos rígidos do maestro de casaco preto. Mais depressa não é possível. Volto a pensar nas aulas de Geografia e no casaco preto. Tropeço mais uma vez e dou uma cambalhota da qual escapo com dificuldade. Continuo a correr até à estação.
Já está na hora de ir para casa e satisfeito com o meu passeio noturno clandestino começo a subida até a mansão, mas algo desperta a minha curiosidade e aproximo-me para ver melhor. É um miúdo. Dois adolescentes tapam o caminho de um rapazito. De repente um deles dá-lhe uma estalada. Sinto uma pontada de raiva. Chego-me ao pé deles. Oi, o que se passa? Eles olham-me com desdém. O que é que queres pirralho? A minha raiva vai crescendo. Não sou nenhum pirralho, perguntei o que é que se estava a passar. Eles riem-se um para o outro. O gozo presente nos seus olhos enfurece-me. Miúdo, vai dormir e não nos chateies! Penso rapidamente, o que quer que o outro rapazolas tenha feito não pode ser assim tão mau para duas pessoas estarem a ameaçá-lo, mas não posso lutar contra eles sozinho. De repente o que tinha estado calado olha-me com preocupação. Começa a segredar para o outro. As suas caras são agora de desprezo. Lançam-me algumas blasfémias. Perco o controlo e quando vejo um deles está a sangrar do nariz. O que me havia falado antes olha-me com fúria. De repente puxa-me pelo colarinho e lança-me. A minha cabeça bate nos caminhos-de-ferro do comboio. Da vala consigo vislumbrar os rostos dos dois adolescentes. Algo está mal. Estão assustados. O meu olhar desce das suas caras e pousa à minha frente. Algo brilhante banha a minha cara e um ruído ensurdecedor preenche os meus ouvidos. TUM-TUM! O comboio avança devagar em relação à correria da minha mente. Os meus olhos perdem a cor e por um momento não sou nada, nem ninguém. Uma sombra passa diante dos meus olhos com uma forma assustadora, mas é consumida pelo brilho dos faróis do comboio que se aproximam; algo agarra o meu colarinho... A luz do comboio apoderou-se dos meus olhos; oiço um sussurro de força... O som das rodas e a claridade preenchem-me completamente. A cauda de um casaco preto passa rente aos meus olhos.
Estou vivo… Os meus olhos ainda não recuperaram a sua luz. Estou de joelhos no chão da paragem. Muito lentamente olho para a vala das linhas do caminho-de-ferro ao meu lado. Viro-me ainda mais lentamente para a minha frente. Sei que estou a chorar pois o vento da noite corta-me nos caminhos abertos pelas lágrimas. Diante de mim está um homem vestido de preto a tentar recuperar o fôlego. Jo-João… A minha voz treme demasiado. Sinto uma dor no cimo da cabeça. Já disse que para si é Professor!  Uma visão inacreditável está diante dos meus olhos. Ele está a sorrir. E não era daqueles sorrisos sádicos que às vezes os professores deitam aos alunos quando lhes mandam carradas de trabalhos de casa. Era um sorriso quente… A minha expressão contrai-se e choro como se não houvesse amanhã. O meu rígido professor vira-se de repente e apenas diz: Anda, amanhã teremos tempo suficiente para percebermos o que é que andavas aqui a fazer a estas horas da noite. Se eu acordar a madame Luísa contigo nesse estado já ninguém lá em casa conseguirá ter uma boa noite de sono! Aceno um sim instantâneo. Era a primeira vez que ele me tratava por tu. As minhas pernas fraquejavam quando me tentei por em pé, por isso levou-me às cavalitas. Nas suas costas o seu casaco preto parecia o céu negro no qual eu poderia desenhar as estrelas que quisesse.

Estava eu, agora, abraçado ao homem que me tinha salvado a vida, mas a sua verdadeira proeza para comigo era de facto muito mais valorosa. Devo muito ao João (que á medida do meu crescimento fora desistindo de que eu lhe chamasse Professor), e acho que o momento em que me apercebi disso pela primeira vez foi de facto aquele. Quando ele me lançou aquele olhar orgulhoso, mas sempre na sua expressão calma, à medida que me observava de cima a baixo. Depois de ter feito comentários semelhantes aos da madame, tentou pronunciar uma pergunta mas esta, com aquele gesto bondoso típico do seu traço, interrompeu-o argumentando que eu ainda não tinha descansado, para além de que precisava urgentemente de um banho e uma cortadela ao cabelo. Ao se aperceber do meu aspeto, bem como do cheiro com que eu agora lhe impregnava a porta principal, esbugalhou um pouco os olhos e acenou um sim instantâneo. Aqueles sorrisos, aquelas vozes que me enchiam por completo a alma como se estivesse a ser embalado, aqueles rostos dos quais dia, após dia os meus olhos ansiavam ver, embebedaram-me de tal maneira naquela pura alegria que eu não pude reparar, ou talvez me tenha negado a perceber por puro egoísmo, que estas pessoas que eram as que o meu coração mais queria, ainda não se tinham apercebido de que eu não dissera uma única palavra desde que chegara. E não era uma simples falta de tema que me impedia. Era o simples medo de que aquele estado tão puro e transparente com que eles me haviam presenteado pudesse também transparecer o meu coração e que quando eu falasse, nada além de lamúrias e lágrimas pudessem sair, sem que mesmo antes eu pudesse ter dito: “Cheguei a casa.”

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