Estava escuro. Que dia é hoje? Ah pois… Levanto-me da
cama. O meu quarto parece uma aglomeração de sombras, mas não tenho medo. Só um bocadinho não vai fazer mal não é?
Rapidamente visto uns calções e uma camisa. Abro a janela e olho para as luzes
da estação. Vamos lá! Uma espécie de
orgulho preenche-me ao saltar da janela para o toldo do telhado. Mais um grande salto! Agarro-me à coluna
e começo a escorregar em caracol até ao chão. Liberdade!! Vou a correr até à estação sem parar. Penso nas aulas
de Geografia com a vara do professor de casaco preto. Corro mais depressa.
Penso nas aulas de etiqueta com os gritos do educador de casaco de preto. Corro
mais depressa e tropeço na minha velocidade impulsionada pela descida. Penso nas
aulas de piano com os ouvidos rígidos do maestro de casaco preto. Mais depressa
não é possível. Volto a pensar nas aulas de Geografia e no casaco preto.
Tropeço mais uma vez e dou uma cambalhota da qual escapo com dificuldade.
Continuo a correr até à estação.
Já está na hora
de ir para casa e satisfeito com o meu passeio noturno clandestino começo a
subida até a mansão, mas algo desperta a minha curiosidade e aproximo-me para
ver melhor. É um miúdo. Dois
adolescentes tapam o caminho de um rapazito. De repente um deles dá-lhe uma
estalada. Sinto uma pontada de raiva. Chego-me ao pé deles. Oi, o que se passa? Eles olham-me com
desdém. O que é que queres pirralho? A
minha raiva vai crescendo. Não sou nenhum
pirralho, perguntei o que é que se estava a passar. Eles riem-se um para o
outro. O gozo presente nos seus olhos enfurece-me. Miúdo, vai dormir e não nos chateies! Penso rapidamente, o que quer que o outro rapazolas tenha feito
não pode ser assim tão mau para duas pessoas estarem a ameaçá-lo, mas não posso
lutar contra eles sozinho. De repente o que tinha estado calado olha-me com
preocupação. Começa a segredar para o outro. As suas caras são agora de
desprezo. Lançam-me algumas blasfémias. Perco o controlo e quando vejo um deles
está a sangrar do nariz. O que me havia falado antes olha-me com fúria. De
repente puxa-me pelo colarinho e lança-me. A minha cabeça bate nos
caminhos-de-ferro do comboio. Da vala consigo vislumbrar os rostos dos dois
adolescentes. Algo está mal. Estão assustados. O meu olhar desce das suas caras
e pousa à minha frente. Algo brilhante banha a minha cara e um ruído
ensurdecedor preenche os meus ouvidos. TUM-TUM!
O comboio avança devagar em relação à correria da minha mente. Os meus
olhos perdem a cor e por um momento não sou nada, nem ninguém. Uma sombra passa
diante dos meus olhos com uma forma assustadora, mas é consumida pelo brilho
dos faróis do comboio que se aproximam; algo agarra o meu colarinho... A luz do
comboio apoderou-se dos meus olhos; oiço um sussurro de força... O som das rodas
e a claridade preenchem-me completamente. A cauda de um casaco preto passa
rente aos meus olhos.
Estou vivo… Os meus olhos ainda não recuperaram a
sua luz. Estou de joelhos no chão da paragem. Muito lentamente olho para a vala
das linhas do caminho-de-ferro ao meu lado. Viro-me ainda mais lentamente para
a minha frente. Sei que estou a chorar pois o vento da noite corta-me nos
caminhos abertos pelas lágrimas. Diante de mim está um homem vestido de preto a
tentar recuperar o fôlego. Jo-João… A
minha voz treme demasiado. Sinto uma dor no cimo da cabeça. Já disse que para si é Professor! Uma visão inacreditável está diante dos meus
olhos. Ele está a sorrir. E não era daqueles sorrisos sádicos que às vezes os
professores deitam aos alunos quando lhes mandam carradas de trabalhos de casa.
Era um sorriso quente… A minha expressão contrai-se e choro como se não houvesse
amanhã. O meu rígido professor vira-se de repente e apenas diz: Anda, amanhã teremos tempo suficiente para
percebermos o que é que andavas aqui a fazer a estas horas da noite. Se eu
acordar a madame Luísa contigo nesse estado já ninguém lá em casa conseguirá
ter uma boa noite de sono! Aceno um sim instantâneo. Era a primeira vez que
ele me tratava por tu. As minhas pernas fraquejavam quando me tentei por em pé,
por isso levou-me às cavalitas. Nas suas costas o seu casaco preto parecia o
céu negro no qual eu poderia desenhar as estrelas que quisesse.
Estava eu,
agora, abraçado ao homem que me tinha salvado a vida, mas a sua verdadeira
proeza para comigo era de facto muito mais valorosa. Devo muito ao João (que á
medida do meu crescimento fora desistindo de que eu lhe chamasse Professor), e acho que o momento em que
me apercebi disso pela primeira vez foi de facto aquele. Quando ele me lançou
aquele olhar orgulhoso, mas sempre na sua expressão calma, à medida que me
observava de cima a baixo. Depois de ter feito comentários semelhantes aos da
madame, tentou pronunciar uma pergunta mas esta, com aquele gesto
bondoso típico do seu traço, interrompeu-o argumentando que eu ainda não tinha
descansado, para além de que precisava urgentemente de um banho e uma cortadela
ao cabelo. Ao se aperceber do meu aspeto, bem como do cheiro com que eu agora
lhe impregnava a porta principal, esbugalhou um pouco os olhos e acenou um sim
instantâneo. Aqueles sorrisos, aquelas vozes que me enchiam por completo a alma
como se estivesse a ser embalado, aqueles rostos dos quais dia, após dia os
meus olhos ansiavam ver, embebedaram-me de tal maneira naquela pura alegria que
eu não pude reparar, ou talvez me tenha negado a perceber por puro egoísmo, que
estas pessoas que eram as que o meu coração mais queria, ainda não se tinham
apercebido de que eu não dissera uma única palavra desde que chegara. E não era
uma simples falta de tema que me impedia. Era o simples medo de que aquele
estado tão puro e transparente com que eles me haviam presenteado pudesse
também transparecer o meu coração e que quando eu falasse, nada além de
lamúrias e lágrimas pudessem sair, sem que mesmo antes eu pudesse ter dito:
“Cheguei a casa.”
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