Quem poderia
imaginar,… quem poderia sequer supor que seriam eles quem mais magoados
ficariam por me verem esconder o meu sofrimento. Se o tempo voltasse atrás, eu
teria agido como um miúdo egoísta e teria pedido que não me deixassem durante a
noite onde as sombras revelam o que há nos olhos dos homens. Mas eu apenas sei
contar o tempo e ele apenas me sabe ajudar a contar. Os meus afazeres
higiénicos ficaram pois então para o dia seguinte. A noite foi antes utilizada
para que eu pudesse descansar (embora numa cama antiga de outro empregado, pois
fora-me negado o meu quarto devido ao meu estado referido pela Madame como:
“Pior que um mendigo”). Mas penso que também a madame e o mordomo tiveram que
fazer um esforço para dormir bem, culpando o sono de alguma visão estranha por
debaixo da minha franja encaracolada e comprida, preferindo pensar e crer na
minha sujidade.
A Madame Luísa atendeu as minhas necessidades
com aquele ar sempre meigo dela e, depois de ter decidido que seria mais fácil
eu tomar banho com maior parte do cabelo e nós já cortados, levou-me até ao pátio onde por entre carreiros
de rosas e arbustos, com um lençol numa mão e a tesoura noutra chegou a um
descampado de erva ainda dentro do grande jardim. Apenas vendo a cadeira de
jardim branca ali isolada ao pé de uma árvore pequenina que ainda me dava pelos
joelhos eu podia dizer que estávamos no nosso sítio secreto (escondido do
senhor e do João) onde ambos passávamos tardes a ler ou a jogar cartas. Tive
pena daquela senhora meiga a quem eu por vezes, por engano ou meiguice, chamava
mãe. Ela ainda me vislumbrava, me queria, como o menino que andava à sua volta
a pedir brincadeiras e jogos tal qual um pirralho mimado. Eu já não era
assim... Há já muito tempo que fora obrigado a crescer para enfrentar o mundo e
todos os seus defeitos cruéis. Para lutar por ele... A madame sentou-me na
cadeira e pousou o alguidar de água juntamente com a tesoura na relva. Depois
estendeu um grande lençol que prendeu às costas da cadeira. Começou-me a cortar
lentamente o cabelo enquanto conversava para o ar acerca dos seus afazeres
pondo aqui e ali uma queixa da qual o destinatário eu já não sabia se era o meu
cabelo emaranhado ou a senhora Rosa da mercearia. Existiam cabeleireiros na
vila mas a madame insistia sempre em ser ela a cortar-mo. Acho, e agora talvez
tentando presentear-me com este pequeno prazer, que gostava de passar os dedos
pelos meus cabelos, afagando-me várias vezes a cabeça. Quando acabou de mo
cortar a parte de trás, sacudiu-me as costas e dirigiu-se para a parte da
frente da cadeira. A minha franja cobria grande parte da minha testa bem como
os olhos. Eu e a madame esboçávamos um pequeno sorriso partilhado. Não sei como
é que ela não tinha reparado quando me abraçou. Talvez fosse da emoção... Mas a
verdade é que quando me lembrei de que já não era assim, era tarde demais...
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