segunda-feira, 1 de julho de 2013

5º " O coração das sombras

Quem poderia imaginar,… quem poderia sequer supor que seriam eles quem mais magoados ficariam por me verem esconder o meu sofrimento. Se o tempo voltasse atrás, eu teria agido como um miúdo egoísta e teria pedido que não me deixassem durante a noite onde as sombras revelam o que há nos olhos dos homens. Mas eu apenas sei contar o tempo e ele apenas me sabe ajudar a contar. Os meus afazeres higiénicos ficaram pois então para o dia seguinte. A noite foi antes utilizada para que eu pudesse descansar (embora numa cama antiga de outro empregado, pois fora-me negado o meu quarto devido ao meu estado referido pela Madame como: “Pior que um mendigo”). Mas penso que também a madame e o mordomo tiveram que fazer um esforço para dormir bem, culpando o sono de alguma visão estranha por debaixo da minha franja encaracolada e comprida, preferindo pensar e crer na minha sujidade.

 A Madame Luísa atendeu as minhas necessidades com aquele ar sempre meigo dela e, depois de ter decidido que seria mais fácil eu tomar banho com maior parte do cabelo e nós já cortados,  levou-me até ao pátio onde por entre carreiros de rosas e arbustos, com um lençol numa mão e a tesoura noutra chegou a um descampado de erva ainda dentro do grande jardim. Apenas vendo a cadeira de jardim branca ali isolada ao pé de uma árvore pequenina que ainda me dava pelos joelhos eu podia dizer que estávamos no nosso sítio secreto (escondido do senhor e do João) onde ambos passávamos tardes a ler ou a jogar cartas. Tive pena daquela senhora meiga a quem eu por vezes, por engano ou meiguice, chamava mãe. Ela ainda me vislumbrava, me queria, como o menino que andava à sua volta a pedir brincadeiras e jogos tal qual um pirralho mimado. Eu já não era assim... Há já muito tempo que fora obrigado a crescer para enfrentar o mundo e todos os seus defeitos cruéis. Para lutar por ele... A madame sentou-me na cadeira e pousou o alguidar de água juntamente com a tesoura na relva. Depois estendeu um grande lençol que prendeu às costas da cadeira. Começou-me a cortar lentamente o cabelo enquanto conversava para o ar acerca dos seus afazeres pondo aqui e ali uma queixa da qual o destinatário eu já não sabia se era o meu cabelo emaranhado ou a senhora Rosa da mercearia. Existiam cabeleireiros na vila mas a madame insistia sempre em ser ela a cortar-mo. Acho, e agora talvez tentando presentear-me com este pequeno prazer, que gostava de passar os dedos pelos meus cabelos, afagando-me várias vezes a cabeça. Quando acabou de mo cortar a parte de trás, sacudiu-me as costas e dirigiu-se para a parte da frente da cadeira. A minha franja cobria grande parte da minha testa bem como os olhos. Eu e a madame esboçávamos um pequeno sorriso partilhado. Não sei como é que ela não tinha reparado quando me abraçou. Talvez fosse da emoção... Mas a verdade é que quando me lembrei de que já não era assim, era tarde demais... 

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